segunda-feira, agosto 31, 2009

A lentidão

A lentidão de Milan Kundera

(...) "O homem inclinado para a frente na sua motorizada só pode concentrar-se no segundo presente do seu voo; agarra-se a um fragmento do tempo cortado tanto do passado como do futuro; é arrancado á continuidade do tempo; está fora do tempo; por outras palavras, está num estado de êxtase; nesse estado, nada sabe da sua idade, nada da mulher, nada dos filhos, nada das suas preocupações e, portanto, não tem medo, porque a fonte de medo está no futuro, e quem se liberta do futuro nada tem a temer. A velocidade é a forma de êxtase com que a revolução técnica presenteou o homem. Ao contrario do motociclista, quem corre a pé continua presente no seu corpo, obrigado ininterruptamente a pensar nas suas bolhas, no seu ofegar; quando corre sente o seu peso, a sua idade, mais consciente do que nunca de si proprio e do tempo da sua vida. Tudo muda quando um homem delega a faculdade da velocidade a uma maquina: a partir de então, o seu proprio corpo sai do jogo e ele entrega-se a uma velocidade que é incorpórea, imaterial, velocidade pura, velocidade em si mesma, velocidade êxtase. Curiosa aliança: a fria impessoalidade da técnica e as chamas do êxtase. O culto do orgasmo: o utilitarismo puritano projectado na vida sexual; a eficácia contra a ociosidade; a redução do coito a um obstáculo que se deve ultrapassar o mais depressa possivel para se chegar a uma explosão extática, único verdadeiro alvo do amor e do universo. Porque terá desaparecido o prazer da lentidão? Ah, onde estão os deambuladores de outrora? Onde estão esses heróis indolentes das canções populares. esses vagabundos que preguiçam de moinho em moinho e dormem ao relento? Terão desaparecido com os caminhos campestres, com os prados e as clareiras, com a natureza? Há um provérbio checo que descreve a sua ociosidade por meio de uma metáfora: comtemplam as janelas de Deus. Quem comtempla as janelas de Deus nao se aborrece; é feliz." (...)
Pois necessitamos de desertos sem tempo, de preliminares longos, de olhares demorados, de olhos abertos que se fecham por tempo indeterminado... Aquiles ou Ulisses? Ulisses pois!