quarta-feira, dezembro 27, 2006

"Poesia numa hora destas?!"

Eu sou daqueles que abrem o Expresso (estranha mania esta a de se ter de acompanhar por esta dose de papel semanalmente) procuram, antes de mais, aqueles dois ou três artigos ou colunas do costume. Nem que depois o resto do jornal, que eu desconfio ter dias a pesar mais de 2 kg, fique esquecido. O segundo passo da “estranha mania” a fazer lembrar rituais litúrgicos, é procurar (e é por esta ordem) a coluna de opinião do Miguel Sousa Tavares e depois a coluna do Luís Fernando Veríssimo, esta já constante do caderno que acompanha o jornal – a Actual. E, depois, claro, há o resto do jornal que tal como todos nós tem os seus dias: dias mais afortunados e outros mais infelizes…
O Miguel Sousa Tavares é conhecido, mas eu não sei quem é o Luís Fernando Veríssimo e na verdade nem me interessa, mas semana após semana, li o “Do lado de lá” (é assim que se intitula a sua coluna) e tornou-se um vício, desconfio que seja da sua escrita que procura envolver as palavras com sentidos e sentimentos por caminhos que acabam por nos ser, a maior parte das vezes, tão comuns… a envolvência encaminha-me direitinho e com pezinhos de lã lá para a terra “do não sei bem onde” – à la manière de “na terra do nunca”… e, deixa sempre o exercício do pensamento e da reflexão sobre o que nos vai rodeando. É esta sensibilidade, que na nossa contemporaneidade é tão estranha que mais me seduz. Eu acho que é de sensibilidade que o autor nos fala. “Talvez a sensibilidade tenha os seus ciclos próprios, independentes da evolução de outras capacidades humanas e da técnica. Ficamos mais bem aparelhados e produtivos em etapas sucessivas, mas o bom-gosto vai e vem sem qualquer lógica ou cronologia aparente. Como o comprimento das saias.” In: Actual, nº. 1781 de 16 de Dezembro de 2006 / Sul, pág. 25
Eu aconselho a leitura da coluna, mas deixo e sem autorização do autor - ele que me desculpe, mas fui incapaz de resistir à transcrição de algumas pérolas tão próprias do quotidiano do ano de 2006 que se apressa a deixar-nos…

Poesia numa hora destas?!

Desmatamento
«Um dia, meu filho»,
disse o velho índio
indicando o topo das árvores
como quem afasta um véu,
«tudo isto será céu.»
Determinismo
Resolvida a dúvida
que todo o mundo tinha.
Deus criou primeiro o ovo,
mas com instruções detalhadas
e todas as coordenadas
para virar galinha.
Contra-indicações
«Contra fel, moléstia, crime,
use Dorival Caymmi.»
Contra tudo o que é dark,
ouça e leia Chico Buarque.
Labirintite, luto, pus?
É batata: Moacyr Luz.
Contra impulsos suicidas,
leia coisas divertidas
até que a angústia estanque.
E muito, mas muito, Aldir Blanc.
A vida está dura? Zuenir Ventura.
Conta sem saldo? João Ubaldo.
Pavor de trombose? Zizzi Posi.
Essa sensação de segundo turno,
de desânimo generalizado,
e que de alguma maneira fizeram você de bobo?
Não esquenta: Edu Lobo.
Contra a enxaqueca,
Leia Rubem Fonseca,
contra o debacle amoroso,
ouça Caetano Veloso.
Abandonado como o Rei Lear?
Leia Moacyr Scliar.
Contra coriza e desdita,
ouça Maria Rita.
Contra aflição e lumbago,
leia Saramago.
Ninguém te ama, ninguém te quer?
Ouça o Charlie Parker.
Tudo é torto, tudo é tosco?
Ainda bem que tem João Bosco.
Contra o reles, Lygia Fagundes Telles.
Contra tudo que amola,
use Paulinho da Viola.
Contra medo do Opus Dei,
use Billie Holliday.
Contra qualquer tipo de crise,
ouça o Mauro Senise.
E, se persistir a dor,
procure um médico – ou o Millôr.
Lembrança
Lembra, querida,
a nossa primeira vez?
A toalha na praia, a lua,
um bolero ao fundo,
você cantando junto,
e eu com a mão no seu…
O quê? Não era você?
É mesmo. Agora me lembro.
Não era nem eu.”

In Actual, nº 1771 de 7 de Outubro 2006 / Norte, pág. 37