segunda-feira, junho 12, 2006

Já quase ninguém é ao longe, já quase em ninguém se vive o desejo ou a credibilidade de um mundo outro, muitas vezes viver deixou de ser vivível. Mas continuará sempre a haver lugares e momentos de resistência em que o desejo de reinveste, lugares e momentos de relação com a alteridade em que nos aproximamos daquilo que desconhecíamos e que, de repente, descobrimos como se desde sempre nos tivesse pertencido. O Amor continua a ser um desses momentos, o Amor é ainda um segredo no deserto, uma possibilidade, sempre em aberto, da alteridade se cumprir, da singularidade se iluminar e resistir à velocidade com que o mundo se inebria e igualiza. É que quando se ama tem-se a impressão de Renascer, se bem que não se soubesse que se estava morto.
AMOR: GRANDES CERTEZAS, MUITAS INCERTEZAS

Por: Terezinha A. Marcon Constante e Viviane Borges Goulart

Ferreira (l999), em seu dicionário, assim registra: “O amor é um sentimento que predispõe alguém a desejar o bem de outrem; ou de alguma coisa”. Este é um significado, mas esse termo “amor” tem sido usado em sentidos tão diferentes, que nenhum conceito consegue abrangê-lo, e cada tentativa de explicá-lo sempre exclui outras.
De acordo com Pereira (l987), relativamente ao amor, “o esforço de elucidar o tema parece dar, como resultado, apenas a percepção de sua complexidade”. Pensadores, filósofos, psiquiatras e estudiosos já tentaram desvendar esse mistério, que provoca sérias mudanças no comportamento humano, mas logo notaram a diversidade intrínseca do amor e jamais conseguiram estabelecer um conceito, menos ainda uma definição.
Segundo Rollo May (l987), distinguem-se, na cultura ocidental, quatro formas de amor: “Sexo, às vezes chamado de luxúria ou libido (ou, pelos gregos antigos, epytymia); Eros, impulso de procriação e criação; Philia ou amizade, amor fraterno; Ágape ou caritas, o amor devotado ao bem dos semelhantes, essência filosófica do cristianismo em sua doutrina original. Num conjunto de entrevistas objectivando conceitos de amor, para psicóloga Maria Tereza, “o amor é um sentimento que envolve sensações de prazer e bem-estar e que ocorre quando existe um senso de identidade entre pessoas com identidades bem definidas e diferenciadas”. Para ela, o amor não se limita a preencher carências, mas significa uma relação de complementaridade e enriquecimento mútuo. O amor representa a essência da vida, nele se encontra um sentido para viver cada dia.
Ainda, a partir das entrevistas com pessoas de faixas etárias e níveis sociais diferentes, identifiquei outros conceitos importantes. Para uma estudante de jornalismo, l7 anos, “o amor é a união de todos os bons sentimentos. Envolve muitos mecanismos humanos (físicos, químicos, psicológicos), e torna-se realmente difícil defini-lo. Porém, arrisco-me a dizer que amar consiste em estar num inconstante estado de graça, numa perturbação interior involuntária. Compreende uma relação de bem-querer, cujo enigma nos é mostrado em cada gesto, intimidado, no entanto, por qualquer manifestação expressiva. No amor ocultam-se os verdadeiros mistérios da vida.
Para Cleuza, 35 anos, deficiente visual, o amor está nas sensações e na natureza: “Escuto e sinto o vento, o barulho da folha que cai, sinto o cheiro do verde. Respiro e sinto calor, às vezes ouço a chuva tocando a terra. Ao ouvir e sentir, caminho para a vida que não vejo, buscando conhecer o que é amor”. Para a professora Maria da Glória, 39 anos, “o amor é a aceitação do próximo”. E para Santana, 63 anos, mãe de l2 filhos, “o amor é para sempre, é uma fonte viva de fé, que fortifica e impulsiona a vida”.
Entrevistando crianças e adolescentes de uma escola pública, percebi que o amor ainda se revela puro e inocente, desejando o bem do próximo, reconhecendo a figura materna como o amor mais profundo e verdadeiro. E remetendo-me, agora, a Platão, aí identifico o amor como desejo de união com o belo, um processo de ascensão espiritual que progride rumo a um estado de contemplação do cosmos, de comunhão com o Ideal, de que se constituem exemplos o amor de Dante por Beatriz e de Petrarca por Laura. Situados entre as fronteiras do humano e do eterno, o amor e a esperança de felicidade, para Dante e Petrarca, ameaçam esvaziar-se com a morte de Beatriz e de Laura. Porém, Dante, em seu itinerário das trevas para a luz, coloca Beatriz na eternidade paradisíaca, porque acredita que ela tenha atingido o mais alto grau de pureza, passando a ser a ligação do humano com o divino. Beatriz, não a mulher, mas a essência, torna-se, para Dante, a representação de que o eterno se concebe, de que o reino de Deus se faz a partir do reino do homem e que isso acontecerá por intermédio da amada. Beatriz é quem o guia no céu, simbolizando o conhecimento dos mistérios divinos. Ela conduz Dante até a morada do Criador e, lá, por um instante, ele desfruta da suprema visão de Deus, visão tão doce que palavras humanas não saberiam expressá-la. A ideia de tempo precário, para Dante, encerra-se na entrada do Paraíso, onde mora o Amor absoluto.
Para Petrarca, o passado é alimento indispensável ao presente. Amou Laura platonicamente a vida inteira, sem jamais declarar-se, e a ela dedicou seus melhores poemas. Com a morte de Laura, o eterno ficou cristalizado no tempo, ou seja, no passado. Sua memória, sempre renovada pela saudade e lembrança de Laura, o consome. No passado, onde ficou a amada, está o suporte para sua existência: E só de nela pensar consigo paz. Petrarca amou Laura, em vida, por 2l anos,
De preso Amor vinte e um anos ardendo,
sem esquecer sua beleza primeira

Ele a via com os olhos da alma, imortalizando-a em esperança e desespero:
E assim de uma só clara fonte viva
Vêm-me o doce e o amargo, que me alimentam.

A ausência da amada fá-lo pensar na própria morte:
Assim face aos cruéis golpes da morte
fujo não célere demais
O amor em Dante e Petrarca transcende o plano terrestre e chega à abstracção total, que a voz de Camões também tenta alcançar, como um dizer imponderável, porque imponderável é o Amor.
Analisar a poesia lírico-amorosa de Camões, é partir de reflexões sobre o sentimento que aflige os corações humanos. Sua poesia desvenda um “eu” que, guiado pela razão e pela emoção, experimenta os mais íntimos pensamentos e desejos, a insatisfação amorosa, a angústia do homem. O poeta não descreve o amor apenas como um sentimento impulsionado por desejos, mas que vem da alma. Na relação com a natureza, busca a “Cousa amada”, a alma ligada à natureza, no pranto amoroso:
Co’a água que cai
Daquela espessura,
Outra se mistura
Que dos olhos sai.
Toda junta vai
Regar brancas flores;
Onde há outros olhos
Que matam de amores.
Celestes Jardins: As flores, estrelas;
Horteloas delas
São uns serafins.
A presença da natureza torna-se sentimentos, angústia em busca do amor:
Sinto o cheiro do verde, as flores caindo,
Os pingos da chuva, o vento.
Respiro quase sufocado,
Caminhando para conhecer o que é amor.

São versos que fazem retornar a Cleuza, 35 anos, deficiente visual, que procura conhecer o amor através do cheiro, do vento. Para muitos poetas, a natureza estabelece uma relação essencial com a alma, em suas emoções mais profundas.
Na poesia de Camões, a insatisfação humana é representada na constante angústia de conceber o amor, na luta íntima entre o real experimentado e o ideal buscado, comunhão plena, a transformar, não os que se amam numa só carne, mas, mais que isso, numa só alma.
Transforma-se o amador na coisa amada,
Por virtude do muito imaginar:
Não tenho, logo, mais que desejar,
Pois em mim tenho a parte desejada...
Se nela está minha alma transformada,
Que mais deseja o corpo de alcançar?
Em si, somente, pode descansar,
Pois com ele tal alma está aliada.
Mas esta linda e pura semidéia,
Que, como o acidente em seu sujeito,
Assim com a alma minha se conforma,
Está no pensamento como ideia,
E o vivo e puro amor de que sou feito,
Como a matéria simples, busca a forma.
É um processo de assujeitamento tão radical, que mesmo o que é contraditório nega a polaridade, rompe com o conceito de dor:
Amor é fogo que arde sem se ver:
É ferida que dói e não se sente.
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer.

A negação da polaridade quer dizer a vitória do sentimento, do coração que consegue elevar-se ao encontro da Razão, o Amor por ela vencido, não para ser aniquilado, mas sim para chegar ao inteligível, ao cósmico, ao Ideal, elevado a uma condição maior, sem comparativos:
Sempre a Razão vencida foi de Amor
Mas, porque assim o pedia o coração,
Quis amor ser vencido da Razão
Ora que caso pode haver maior.

Assim, no lirismo de Camões, o amor é visto como ideia e como manifestação de carnalidade. Camões não descreve uma mulher ideal, mas um ideal de mulher, um desejo que se supera, uma carnalidade que é sábia ao vencer-se pela contemplação, não de uma formosura ideal, mas de um ideal de formosura:
Porém como resisto
Contra um tão atrevido e vão desejo?
Faço-me forte nessa vista pura.
Armando-me da vossa formosura...

Uma outra vez é oportuno retornar às entrevistas. Para a estudante de Jornalismo, “o amor envolve muitos mecanismos físicos, psicológicos, químicos que causam uma perturbação interior”. Camões soube descrever toda essa “perturbação interior”. O amor como objecto do desejo, na lírica de Camões, é composto de sentimentos contraditórios que se tornam mistério e causa de inconformismo, para chegar ao amor como um inconstante “estado de graça”, mobilizador de profundas mudanças de estados de alma:
Mudam-se os tempos, mudam as vontades
Muda-se o ser, muda-se a confiança,
Todo mundo é composto de mudanças,
Tomando sempre novas qualidades.

Camões esforça-se para encontrar uma essência das coisas, fruto de vivências, procura representar a experiência do homem, não como um sentimento individual, mas “Amor” que perturba, angustia, desespera, a razão de ser de um homem, de uma sensibilidade guiada pela esperança, na busca incessante da realização amorosa.
Como Petrarca amou Laura, e Dante a Beatriz, também Camões expressou o “Amor” elevado a sentimento universal, dividido entre o mundo sensível e o inteligível, um sentimento imponderável, um sofrer que mata, e, ao mesmo tempo, uma esperança que alivia. O “poeta do amor”, em seus poemas, fala da dor do homem, do descontentamento e da esperança. Em Camões a dor se aprimora, reconstruindo, pelo Amor, a harmonia dos corações humanos, na luta constante entre o ser e o que deve ser, mundo em desconcerto:
Quem pode ser no mundo tão quieto
Ou quem terá tão livre pensamento
Ao ver e notar do mundo o desconcerto?

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